Antes mesmo de irromper na cena pública,
já mesmo na expectativa de um vir-a-ser, em um cenário ainda predominantemente
heteronormativo (quando não misógino e profundamente homofóbico), o inédito beijo
entre dois homens na televisão brasileira, exibido pela maior emissora do país,
já nasceu como um evento histórico. Juntavam-se, antes mesmo de sua exibição,
expectativas consumidoras tanto quanto sócio-políticas. O simbólico gesto de
afeto entre os personagens Niko e Félix aparecia como espetáculo oferecido pelo
produto midiático, à espera de elevação dos índices de audiência. Não menos,
também, do que uma cena-acontecimento, envolta por um atribuído ineditismo,
comemorado e criticado por muitos, mas percebido como uma esperada ruptura de
um tabu.
Produto de armação publicitária tanto
quanto de pressão de diversos públicos (desde fãs dos personagens e da
telenovela até ativistas e militantes das causas LGBT), o acontecimento invadiu
simultaneamente os espaços privados (graças ao alcance, pode-se dizer, praticamente
total da emissora pela população brasileira), tornando-se alvo de intensa
comoção nacional. Fato cotidiano inscrito na tradicional diegese folhetinesca,
rompendo com a lógica de convenções sociais que talhavam a exibição de um beijo
de caráter homossexual. No interior de uma categoria bem marcada, esta que
poderíamos, como em um atalho, denominar "acontecimento pós-moderno",
faz assinalar a novidade de uma mensagem indiscreta pela comoção também
provocada pelos profissionais do departamento de teledramaturgia da Rede Globo,
e utilizada politicamente pela emissora para reproduzir sua grande influência e
reafirmar a hegemonia mercadológica.
O beijo, analisado pelo historiador do
presente, corresponde também à sua parte não-factual: aquela que complexifica
sua significação, evento que se desloca a um outro conjunto de acontecimentos,
ainda mais profundos: momento privilegiado de lutas pela libertação de
dominados, de pessoas não-heteroafetivas e não-cisgêneras, submetidas
ao domínio e à opressão. O ato simbólico é reiterado ao ser exibido em um
dos tradicionais meios do poder disciplinador: a mídia, aquela que conforma
performatividades e expectativas concernentes aos papéis sociais de gênero, ao
controle da sexualidade e do corpo, às subjetividades e afetividades
hierarquizadas. O acontecimento pós-moderno, irradiando-se ainda mais pelo
caráter interativo e simultâneo de outras mídias sociais intercomunicantes
(com destaque para a internet), que ineditamente antevêm sua realização, agiganta-se:
conforma-se como evento político para além das fronteiras tradicionais do
Estado; alia os interesses capitalistas representados pela televisão a pautas
de movimentos sociais; fabrica a narrativa ficcional é capaz de provocar
empatia e identificação, no apresentar a visibilidade de seculares
discriminações, fazendo por vezes desmanchar as distâncias repousadas entre
ficção e realidade. É este tipo de evento que simultaneamente emerge da
expectativa das massas e a elas serve como um verdadeiro espetáculo, pronto a
ser consumido e re-fabricado.
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