segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O beijo gay como acontecimento

Antes mesmo de irromper na cena pública, já mesmo na expectativa de um vir-a-ser, em um cenário ainda predominantemente heteronormativo (quando não misógino e profundamente homofóbico), o inédito beijo entre dois homens na televisão brasileira, exibido pela maior emissora do país, já nasceu como um evento histórico. Juntavam-se, antes mesmo de sua exibição, expectativas consumidoras tanto quanto sócio-políticas. O simbólico gesto de afeto entre os personagens Niko e Félix aparecia como espetáculo oferecido pelo produto midiático, à espera de elevação dos índices de audiência. Não menos, também, do que uma cena-acontecimento, envolta por um atribuído ineditismo, comemorado e criticado por muitos, mas percebido como uma esperada ruptura de um tabu. 

Produto de armação publicitária tanto quanto de pressão de diversos públicos (desde fãs dos personagens e da telenovela até ativistas e militantes das causas LGBT), o acontecimento invadiu simultaneamente os espaços privados (graças ao alcance, pode-se dizer, praticamente total da emissora pela população brasileira), tornando-se alvo de intensa comoção nacional. Fato cotidiano inscrito na tradicional diegese folhetinesca, rompendo com a lógica de convenções sociais que talhavam a exibição de um beijo de caráter homossexual. No interior de uma categoria bem marcada, esta que poderíamos, como em um atalho, denominar "acontecimento pós-moderno", faz assinalar a novidade de uma mensagem indiscreta pela comoção também provocada pelos profissionais do departamento de teledramaturgia da Rede Globo, e utilizada politicamente pela emissora para reproduzir sua grande influência e reafirmar a hegemonia mercadológica. 

O beijo, analisado pelo historiador do presente, corresponde também à sua parte não-factual: aquela que complexifica sua significação, evento que se desloca a um outro conjunto de acontecimentos, ainda mais profundos: momento privilegiado de lutas pela libertação de dominados, de pessoas não-heteroafetivas e não-cisgêneras, submetidas ao domínio e à opressão. O ato simbólico é reiterado ao ser exibido em um dos tradicionais meios do poder disciplinador: a mídia, aquela que conforma performatividades e expectativas concernentes aos papéis sociais de gênero, ao controle da sexualidade e do corpo, às subjetividades e afetividades hierarquizadas. O acontecimento pós-moderno, irradiando-se ainda mais pelo caráter interativo e simultâneo de outras mídias sociais intercomunicantes (com destaque para a internet), que ineditamente antevêm sua realização, agiganta-se: conforma-se como evento político para além das fronteiras tradicionais do Estado; alia os interesses capitalistas representados pela televisão a pautas de movimentos sociais; fabrica a narrativa ficcional é capaz de provocar empatia e identificação, no apresentar a visibilidade de seculares discriminações, fazendo por vezes desmanchar as distâncias repousadas entre ficção e realidade. É este tipo de evento que simultaneamente emerge da expectativa das massas e a elas serve como um verdadeiro espetáculo, pronto a ser consumido e re-fabricado.


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