quarta-feira, 22 de junho de 2011

Vingança


Caminhei pelas rochas que, inexplicavelmente, pareciam formar tua imagem. Desnivelei meus olhos queimados lacrimejando as faíscas que de ti saíam. Atravessei teus balanços. Senti cada gota de teu sangue cair em minhas costas. Machucavas-me cada vez que mostravas tua indiferença.

Escondias teus instrumentos, mas ainda me cirurgiavas para anestesiar meu corpo. Não refutavas sentir o doce prazer de atingir-me. Devaneios teus me debatiam dentro da fogueira dos sentidos e me destroíam na extensão da tua negativa. Transmutava-me em tua fotografia revelada. Teu rosto sequer aparecia, apenas teu vulto. Estavas queimando a ti, com teu poder de escorpião. Transformaste-me em um comensal da tua maldade.

Combustaste minha alma. Não tiveste qualquer medo. A tempestade de fogo não era nem metade de teu poder. Engolias-me. Fazias-me morrer sem, sequer, envelhecer. Entorpecias qualquer gota de meu alívio. Mas tu, ardilosa feiticeira do sensível, não és mais minha soberana. Teu sangue também corre em minhas veias e borbulha a cada segundo. Continuo aqui, a esperar o dia em que possa sair do teu casulo. Confio no tempo, que será capaz de me afastar de ti.

domingo, 12 de junho de 2011

O fantástico cotidiano



Parece, de tempos em tempos, que a melancolia se abate sobre o cotidiano. Sentamos no próprio corredor da vida enquanto fechamos as suas portas. Fingimos não enxergar, sentimos o tempo borbulhar pelos nossos pés, tentar fazer-nos voar. Insensivelmente, ignoramos a candura de cada olhar que nos atravessa; invisibilizamos todo tipo de alegria mergulhada no cotidiano dos gestos. Incomoda-nos o tédio; aborrece-nos carregar um peso tão grande nas costas que é a provocação do viver. A existência parece-nos insossa.

Talvez seja essa sensação de melancolia proporcionada pelo cotidiano que nos permita mergulhar mais profundamente nas problemáticas que nos abatem. Mudamos, a cada hora, sem nos fazermos sentir modificar. As lágrimas não caídas, os gestos não aproveitados, os olhares não correspondidos; todos os desperdícios se acumulam em angústias insustentáveis. Procuramos então, em cada atitude, como se tudo viesse a acontecer pela primeira vez, o maravilhoso e assustador gostinho de estréia.

Quando nos damos conta, o peso da experiência trava uma luta com o desejo de que cada repetição seja o novo na vida. Ao final, tudo muda e continua o mesmo simultaneamente. Não existe uma contradição. Apenas essa modificação do imodificável consegue fazer com que choremos, ainda que nossos rostos estejam congelados pelo medo de viver.